Ships problemáticos - Parte I

Imagem: reprodução/internet
Ship é o termo usado para designar o casal (real ou em potencial) apoiado por um ou mais fãs. Essa ação se chama shippar. Ou seja, por exemplo, Rony e Hermione é um ship, e eu, que sempre torci para que eles ficassem juntos, shippo os dois. O universo de fãs é imenso e cheio de termos e definições, inclusive no que diz respeito aos ships, mas esse é o básico.

Quando se está há muito tempo envolvido nesse meio, a gente acaba aprendendo e se acostumando com o fato de que quase tudo é shippável. Desde personagens sem química, ou que nunca apresentaram qualquer intenção romântica, até personagens que nunca se conheceram (e aí se inclui até crossovers).

Recentemente até viralizaram umas fanfics super trashFaustão e Selena Gomez, Faustão/Ana Maria Braga/Harry StylesSelena Gomez e Stalin. Por algum motivo, brasileiros têm fixação por fanfics bizarras. Mas lááá atrás, no Orkut, eu já havia me deparado com uma comunidade chamada “Gina, Grope e o Salgueiro Lutador, melhor ship”. Sério.

O melhor do Brasil é o brasileiro (Imagens: reprodução/internet)
Estranhezas à parte, essas coisas são tão absurdas (e muitas vezes assumidas como tal) que não há muito questionamento a ser feito, no máximo alguns “wtf?”. Na verdade, me lembro que na época do Orkut havia duas “correntes” principais: as disputas de ships – Rony/Hermione VS Harry Hermione, por exemplo – e a “o ship é estranho, mas é meu”, das pessoas que gostavam, mas sabiam que havia algo de estranho ou mesmo de errado ali.

O problema é que atualmente eu vejo uma adesão e uma defesa cada vez maiores de ships realmente problemáticos, e que são levados de forma séria pelo público. Não que a romantização e naturalização de relacionamentos tóxicos seja um fenômeno recente; desde sempre eles são retratados pela mídia como histórias de amor, e com apoio do público. Entretanto, quase sempre essa problemática se escondia sob sutilezas, que não amenizavam a situação, mas que dificultavam o entendimento de que havia algum problema.

Apesar de não ser mais tão bem aceito, esse fenômeno até segue acontecendo. Vide a legião de fãs da Saga Crepúsculo que sonhavam com Edwards Cullens, e mais grave, o estouro 50 Tons de Cinza e a paixão despertada pelo obsessivo Christian Grey. Não à toa o segundo é inspirado no primeiro, mas isso já é assunto para outro post...

Enfim, eu não estou falando aqui de histórias de abuso disfarçadas de romance, mas de casos que se vestem e se apresentam como tóxicos, mas que parte do público insiste em enfiar romance em algum lugar. Nesses casos, geralmente, os idealizadores dessas histórias fazem até certo esforço para explicitar que ao menos uma pessoa está ficando machucada com aquilo.

Provavelmente um dos casos mais clássicos e antigos é o relacionamento entre Harley Quinn e Coringa. Pessoas chegam ao ponto de colocá-los como exemplo e ideal de casal que “aceita e ama as loucuras um do outro”. NÃO. Isso não é amor, é abuso. A “loucura” da Harley é Síndrome de Estocolmo causada pelo próprio Coringa, e seu “amor” é o mesmo que incapacita mulheres todos os dias de saírem de relacionamentos abusivos. A “loucura” do Coringa é o que o torna cruel e egoísta, e seu “amor” é seu sentimento de posse e prazer de manipular, ferir e maltratar alguém que faz tudo por ele.

"Você não precisa ser louco para se apaixonar. Mas ajuda" Não, isso não é amor (reprodução/internet)

Tudo isso era explícito, mas uma grande parte do público seguiu e segue shippando os dois. Mesmo depois de a Harley ter finalmente caído fora dessa relação e engatado um romance com a Hera Venenosa (desmitificando a ideia de que um relacionamento entre vilões só poderia ser doentio). Até hoje eles são vistos apenas como um casal de loucos, que se merecem e foram feitos uma para o outro.

Tem algo errado aqui, né? (reprodução/internet)
Outro ship, provavelmente ainda mais extremo – e talvez por isso com menos adeptos – é Jessica Jones e Kilgrave. A HQ já trazia explícito o fato de que Kilgrave era um abusador, e a série da Netflix fez o mesmo, para um novo público. Mas, por algum motivo, algumas pessoas começaram a sentir empatia e até carinho pelo vilão. Eu não aceito a desculpa de que os responsáveis por isso sejam o carisma e a afeição pelo seu intérprete, David Tennant (que arrastou a legião de fãs de seu trabalho em Doctor Who para JJ).

Reprodução/internet
Tennant é um excelente ator, que conseguiu passar a essência cruel e manipuladora do personagem. Mesmo sendo fã dele e adorando suas aparições, eu torci pela morte do desgraçado do personagem. Mas eu cheguei a ver pessoas que acreditavam no “amor” de Kilgrave e que, por isso, torciam para que Jessica o perdoasse e, assim, ele encontrasse sua redenção. E é nesse ponto que mora todo o perigo e é um dos motivos de existirem ships como esses.

Enquanto o “casal” Harley/Coringa é defendido pelo suposto “merecimento” de um pelo outro, “relacionamentos” como o de Jessica e Kilgravesão apoiados pela ideia do merecimento dele à redenção, e a quase obrigatoriedade dela curá-lo. Não importa o quanto a vítima tenha sofrido nas mãos do abusador, o quanto ela tenha sido controlada, traumatizada e atormentada. Ela pode – e deve – usar seu amor para salvar o vilão e leva-lo para o caminho do bem.

Ships baseados em pensamentos como os dois acima são absurdamente comuns, e ainda existem outros tão problemáticos quanto. Todos eles, no entanto, possuem um ponto em comum: são reflexos de comportamentos e problemáticas do mundo real. Costumamos direcionar para os personagens os direitos e deveres que a sociedade impões sobre homens e mulheres. No caso da Harley e do Coringa, por exemplo. A sociedade tende a amenizar a dor da mulher abusada quando acredita que ela deseja estar naquela relação (quem nunca ouviu a expressão “mulher de malandro gosta de apanhar”?). E, como de costume, esse mesmo pensamento é transferido para a ficção.

Note-se que nem todo ship com potencial para ser problemático sempre é. Outra peculiaridade do universo dos fãs é a capacidade que eles têm de moldar as produções e os personagens a sua própria vontade, principalmente quando falamos de ships não canônicos (aqueles que não têm existência romântica na história original). Por isso é fundamental tentar entender os motivos de existir aquele ship, e não necessariamente classificar todos como problemáticos (o que pode, inclusive, diminuir a força do questionamento).

Eu fiz uma pequena pesquisa sobre o assunto e acabei descobrindo que a temática é muito mais extensa que eu pensava. Por isso, em vez de fazer um único post sobre isso, resolvi fazer uma série. Nas próximas postagens da coluna Mulheres na Cultura Pop você confere reflexões mais detalhadas de cada caso. Lembrando que esta semana houve um atraso e o texto saiu no domingo, mas a previsão é que a coluna saia sempre na quinta-feira. Continue com a gente nas próximas semanas, e não deixe de comentar com a sua opinião.

15 comentários:

  1. OI! Minha primeira visita aqui. Adorei o post! Quando comecei a ler não tinha pegado a essencia do que vc ia falar e estava visualizando outra coisa completamente diferente.
    Mas concordei com cada palavra sua. Certos casais na literatura não são saudáveis, mas isso demonstra exatamente como a nossa sociedade funciona e algumas pessoas querem que sejam normais e aceitos;
    Mesmo para quem não está em um relacionamento abusivo é uma luta diária contra as pessoas ao redor que não entendem o que é um relacionamento abusivo e fazem perguntas como 'mas o que seu namorado pensa de vc pintar seu cabelo dessa cor?', "o que ele tem a ver com meu cabelo?" é o que eu vivo respondendo :/

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    1. Pois é, Agatha, a literatura e a arte como um todo têm até a obrigação de retratar esse tipo de coisa, mas como elas são: nocivas e cruéis. Romantizar relacionamento abusivo é muito errado, mas infelizmente um retrato da nossa sociedade. Pena que esse tipo de coisa é tão naturalizada que as pessoas estranham relacionamentos saudáveis!

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  2. Olá.
    Adorei o post!
    Concordo com tudo. Já havia observado todos os exemplos que você citou e como as pessoas tendem a postar algo para ser aceito na sociedade hoje em dia :(

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    1. É muito triste que as pessoas não parem para refletir sobre seus gostos pessoais, e o quanto eles são nocivos, né?

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  3. Olá.
    Adorei o post!
    Concordo com tudo. Já havia observado todos os exemplos que você citou e como as pessoas tendem a postar algo para ser aceito na sociedade hoje em dia :(

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  4. Que post maravilhoso! Super bem escrito, e me deixou querendo mais. Realmente temos essa "mania" de achar que a moça mudou o rapaz malvado e shippar aquele casal. Não que isso não possa acontecer, não que um cara ruim não possa se redimir e a moça perdoar, mas levar isso para ship já é um problema porque acaba nos levando a aceitar situações de injustiça como você tão bem expôs aí no texto. Eu não conheço muito do mundo dos quadrinhos então não sei muito bem do que se trata esses personagens. Mas mal posso esperar para ver os demais posts e ver se encontro algum ship que eu conheça e comparar com o que eu pensava sobre ele. Mais uma vez, parabéns pelo texto!
    Beijos!
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    1. Se esse tipo de "shipp redenção" não fosse algo tão comum, e usada em situações tão absurdas (no caso da Jessica Jones, por exemplo, que foi ESTUPRADA pelo cara e jamais superaria algo tão sério), seria até aceitável. Pessoas realmente mudam, mas querer passar por cima dos sentimentos da mulher pela mudança do homem que a maltratou é bem errado, né? Obrigada pela leitura, e continue acompanhando a série, ainda tem muito assunto a ser tratado!

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  5. Oi Tamires! É tão bom encontrar pessoas que defendem e entendem um ponto de vista pessoal. Faz algum tempo que defendo esse tema (indo contra essa loucura do fandom de só shippar 'problemas'), e escrevi algumas coisas sobre isso no meu blog também. A parte que mais me chamou a atenção no seu texto foi: "Todos eles, no entanto, possuem um ponto em comum: são reflexos de comportamentos e problemáticas do mundo real." É exatamente isso! Eu queria que mais e mais pessoas defendessem e entendessem isso. :?
    Mas enfim. Continue (e parabéns) com essa série, ela é ótima e você está fazendo um ótimo trabalho! \o/

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    1. Existem tantos fandoms e cada um deles é tão grande, que é meio difícil não encontrar esse tipo de situação "absurda". Mas sempre é bom encontrar pessoas que compartilham do nosso ponto de vista! Obrigada, e que bom que gostou do post! Continue com a gente nos próximos!

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  6. Adorei seu texto! Conseguiu explicar direitinho o problema dos casais. E nesse caso da Jessica, essa história da redenção acontece muito mesmo, e acho até que possa ser considerada uma síndrome de estocolmo também, porque a pessoa se apaixona e sente empatia por alguém que abusou dela. Mas o público ainda gosta muito disso de redenção, arrependimento e dependência :(

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    1. Então, Simone, como não é canon, fica uma margem aí pra essa possibilidade da síndrome. Infelizmente, é algo muito comum mesmo. O público tende a por o bem-estar das personagens femininas em segundo plano.

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  7. Oi moça! Excelente texto! Só uma coisa, o termo é "ship" de "navio" em inglês mesmo hahaha.
    De volta ao tema do texto, acho que um dos maiores problemas é que a obra que originou os personagens foi escrita sem uma perspectiva crítica. Quando a DC criou a Harley, não estavam em momento algum tentando representar violência doméstica, nem nada do tipo. Sou fã de quadrinhos (principalmente DC/Vertigo), mas admito que muitas obras são absolutamente superficiais e muita coisa só é escrita para valor de choque, pra ser visualmente "cool e dark" (em minha opinião, não tem nada de dark e cool nisso, acho de muito mal gosto ficarem desenhando o Coringa batendo e maltratando a Harley. Não é legal ler sobre uma personagem sendo degradada dessa maneira). Acredito que até a própria falta de mulheres roteiristas faz com que esse tipo de tema seja escrito sem o menor cuidado. Em minha opinião, demorou bastante pra DC perceber que esse relacionamento era abusivo e tentar arrumar as coisas, fazendo a Harley se separar do personagem e começar um relacionamento com a Ivy. E mesmo assim, Harley/Coringa continua sendo marketado como casal icônico de vilões, ou seja, o público mais casual é incentivado a pensar que é um romance e não fica nem sabendo das cenas de abuso.
    Tudo isso pra dizer que, enquanto o fandom deveria parar de romantizar esse casal, não devemos eximir a obra original de culpa por ter incentivado tal leitura. O fato é que autores de quadrinhos deviam ser mais autocríticos do que estão escrevendo.
    Não assisto Jessica Jones, mas creio que esse arco de redenção também aparece no ship Rey/Kylo de Star Wars. Em minha opinião, as pessoas acabam lendo dessa maneira porque estamos acostumados com narrativas masculinas, sobre homens e suas histórias, então quando há uma heroína e um vilão em conflito, já somos treinados a conseguir ver o lado do cara, uma vez que a grande maioria das histórias são narrados pela perspectiva masculina. Novamente, a culpa recai sobre a falta de representação na mídia popular.
    Acho que isso foge um pouco do assunto, mas em geral, considero o ato de escrever fanfics uma forma de escapar dos roteiristas oficiais e sua visão patriarcal, do male-gaze e etc. Podemos criar novos relacionamentos para personagens favoritas, modificar o que achamos ruim no canon, colocar mais representação de minorias, reescrever um relacionamento zoado para que seja algo funcional, etc. Vale dizer que fanfics são escritas por mulheres (em todos os fandoms!! se você checar os maiores sites de fanfic, somos 80%-90% das usuárias) e, não surpreendentemente, isso é usado como motivo de piada, para dizer que não somos fãs de verdade, desqualificar nossa habilidade enquanto autoras e etc. Não é uma surpresa que a fanfic publicada e, portanto, "escolhida" pra representar esse meio, tenha sido algo tão horrível que nem os 50 tons de cinza: é só mais uma maneira de nos desqualificar. Tem autoras talentosíssimas que escrevem dezenas de obras gratuitas que valem muito mais a pena do que o que é considerado "oficial".

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    1. Olá, Ana! Olha, eu vou admitir que eu fiquei muito confusa se o certo era ship ou shipp, porque no Brasil o termo virou uma bagunça e cada um escreve de um jeito. Quando pesquisei achei tanto "shipp" que achei que tava certo. Pesquisei de novo aqui, e em posts em inglês é sempre com um p só, mesmo. haha Vou editar o post!
      Sobre sua reflexão, ela definitivamente é MUITO pertinente! Não dá pra eximir de culpa os produtores, porque eles têm responsabilidade, sim. De fato, Harley e Coringa são muito mais shippados pelo público comum, mesmo que haja aquela parcela de leitores de quadrinhos que seguem nessa onda. Por isso acho que o marketing do casal é muito mais preocupante que as histórias em si. Um exemplo é o filme do Esquadrão Suicida, que mesmo que na história o abuso ficar escancarado, fica complicado defender depois que até cartão de dia dos namorados com os dois eles fizeram, né?
      Sobre fanfics, eu acho que tem os dois lados. Sim, tem uma abertura maravilhosa para que a gente se posicione, para que criemos coisas cada vez mais representativas e corretas. Mas, por outro, muitas autoras de fanfics são também consumidoras dessa mídia machista, e acabam reproduzindo o que veem. O extremo são fanfics onde personagens femininas fodas são reduzidas a mocinhas indefesas. Se isso acontece até com grandes produções, como não aconteceriam nas fanfics, né? Não dá pra dizer que é um ciclo vicioso, mas não deixa de ser um problema que se sustenta sempre. Enfim, obrigada pelo comentário!

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  8. Que pena que peguei o bonde andando nessa série de posts, mas já li todos até agora, e estou impressionada! Achei muito importante você ter começado a falar disso citando Arlequina e Coringa, por causa do filme Esquadrão Suicida. Eu assisti na semana passada, já sabendo que a Arlequina estaria bem sexualizada, mas fiquei também procurando elementos que mostrassem a relação abusiva entre os dois e me incomodei muito com o que foi mostrado no filme...

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    1. Eu ainda não vi o filme, mas pelo que tão falando foi tudo muito amenizado... :/ É ruim porque isso só reforça a romantização, né? E seja bem vinda para continuar comentando e lendo! Por enquanto vou parar de fazer os posts em sequência, mas vira e mexe deve aparecer mais algum da série por aqui!

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