Ships problemáticos – parte III: quando o ‘creepy’ vira ‘fofo’

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Esta é a terceira parte de uma série de posts. Leia a primeira parte aqui. E a segunda aqui.

Em um episódio de How I Met Your Mother (P.S. I Love You, 8x15), o pior personagem protagonista Ted apresenta a teoria “Dobler-Dahmer”*:

“Se duas pessoas estão a fim uma da outra, então um grande ato romântico funciona: Dobler, mas se uma pessoa não está a fim, o mesmo gesto vira uma loucura de serial-killer: Dahmer”

Ele usa essa teoria para justificar as ações de uma garota em quem ele está interessado, Dobler, mas que ao longo do episódio vai se revelando mais e mais esquisita, até acabar virando uma Dahmer.

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Por mais que eu deteste o Ted e essa teoria seja problemática, o episódio faz uma brincadeira que ajuda a esclarecer uma coisa: não importa o quanto haja interesse das duas partes, existe um limite, em que você começa a invadir o espaço pessoal de alguém, e em que invariavelmente você se torna um stalker.

Dito isso, é interessante observar o quanto a ficção ignora esse limite, mesmo quando o cara tem tudo para se enquadrar num Dahmer. Isso até quando não existe qualquer reciprocidade (elemento básico para considerá-lo um Dobler, só lembrando).

"Não tenho certeza se é romântico ou assustador" Na dúvida, assustador. Sempre asustador (reprodução/internet)

Ah, e claro, aquela velha regra de “aceitável para homens mas não para mulheres” permanece aqui, viu? Enquanto o cara obcecado é romântico, a moça que faz as mesmas coisas que ele é patética. Por isso é tão mais comum ver ações masculinas do tipo sendo romantizadas na ficção.

Assim, se cria um fenômeno tão assustador quanto seus protagonistas: o “creepy guy” que acaba virando “o fofo”. Não importa se ele se pendura em uma roda gigante e ameaça se matar se a garota não sair com ele, se ele fica no quarto dela escondido a vendo dormir (cof-Crepúsculo de novo-cof) ou se ele é um dos muitos personagens bizarros de filmes do Adam Sandler.

"Edward: Eu estou aqui todas as noites... Te observando enquanto dorme. Bella: Oh, Edward! Isso é tão romântico!"
"STALKERS: Eles NÃO são românticos. Eles são ASSUSTADORES. Chame a polícia" (reprodução/internet)

Essas coisas não são apresentadas como atos perturbadores e sinais de possíveis distúrbios psicológicos, mas como ações de românticos incorrigíveis. Ah, importante frisar: nem sempre o creepy guy precisa de ajuda psicológica; às vezes ele é só um babaca acostumado a ter tudo o que quer.

E como eu já falei no último post, esses padrões das grandes produções estão entre os responsáveis pelo surgimento e manutenção de ships com a mesma ideia. Em Friends, por exemplo, há um episódio em que a Phoebe passa a ser seguida por um cara que acha que ela é sua irmã gêmea, Ursula. Ela acaba se afeiçoando ao stalker, e inclusive deixa que ele a siga. O relacionamento dos dois não chega nem perto de dar certo por motivos óbvios, mas eu já topei com fãs que chegaram a shippar o “casal”.

Malcolm (stalker da Ursula) e Phoebe  (reprodução/internet)
Um caso bem recente vem da nova produção da Netflix, Stranger Things – que, aliás, foi o que me fez lembrar desse fenômeno e adicionar estre post à série –. Vou tentar não dar spoilers (até porque eu ainda estou no 4º episódio e só vou falar sobre o que já vi e no máximo me basear no que me falaram). Mas se não quiser saber nada sobre, pule para os dois próximos parágrafos.

Basicamente, não é nada legal um romance entre a Nancy e o Jonathan depois que ele a espionou e fotografou escondido em um momento de intimidade. Aliás, a espiada já é creepy e invasão de privacidade por si só, mas o registro da sua imagem sem autorização não só é ainda mais assustadora como, com o perdão da palavra, bem escroto.

Jonathan e Nancy  (reprodução/internet)

Surge também a questão que shippá-la com ele só por considerar pior o outro pretendente dela, Steve, é um reforço da ideia de que uma personagem feminina precisa de um homem para ter sua trama completa.

E enquanto o padrão da semana passada (o personagem feminino como redenção do masculino) trazia a mulher como recompensa pelo bom comportamento do homem, este de certo modo faz um caminho inverso: não só não importa o quanto o cara ultrapasse o limite pessoal da moça, como é isso que o leva a conquistá-la. Acho que dá pra entender o que tem de errado aí, né?

* A teoria faz referência a Lloyd Dobler, do filme Digam o que quiserem, e ao serial-killer Jeffrey Dahmer

6 comentários:

  1. Estou cada vez mais apaixonada por essa série de posts. É tanta coisa que os filmes nos fazem achar fofos e compramos, mas na vida real temos medo. Porém eu não tinha essa percepção de desconstruir esse aspecto. Sequer tinha parado para pensar. Na época em que eu gostava de Crepúsculo eu achava fofa a superproteção do Edward, mas pensando bem não queria isso pra mim não. Quando meu namorado começa a querer "me proteger" de algo eu já me irrito. E deve ser realmente assustador acordar e ter alguém te vigiando. Eu não conseguiria dormir não. Capaz até de ligar para a polícia HAHAHAHHA

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    1. Eu nunca cheguei a ser fããã de Crepúsculo, mas comprei por um tempo essa ideia de romance. Mas aí a gente para pra aplicar isso na vida real e é tudo beeeem assustador. Ainda bem que amadurecemos, né?

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  2. EU ODEIO O TEEEEEEEEEEED meu deus ele é o pior, pior, pior e ele mesmo ultrapassa essa teoria dele virando o personagem mais Dahmer da história das séries, perseguindo como um louco uma mulher que deixou claro que não quer ele, mas voltando para a pauta: realmente foi muito problemático esse núcleo da Nancy em Stranger Things, o Jonathan ultrapassou os limites e mesmo assim a série nos deu a impressão de que "o certo" era eles ficarem juntos.
    To amando essa série de posts também <3
    Iza do blog Peixinho Geek

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    1. Me abraça ❤ "O inimigo do meu inimigo é meu amigo" e todo mundo que odeia o Ted fica ainda mais legal pra mim haha E siiim, o que mais incomoda é a forma como isso é naturalizado na série... Foi uma cena bem desnecessária, e que sem ela o romance dos dois seria até plausível (mesmo que eu ache clichê haha)

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  3. Esse post foi um tapa na cara pra mim! Quanto mais leio essa série maravilhosa de posts, mais eu descubro que a romantização de abuso na mídia e na cultura pop, nos filmes, séries e livros, é uma verdadeira armadilha!
    Eu simplesmente adorei Stranger Things, mas não fiquei satisfeita com a história da Nancy. Desde o início, eu não concordava nem um pouco em ver ela com o Steve, e aí comecei a torcer para que ela ficasse com o Jonathan, porque afinal, o irmãozinho dele tinha sumido, ele precisava de apoio... Foi mais ou menos assim que eu pensei. Nem me lembrei do quanto foi errado e grave ele ter espiado e fotografo ela naquela festinha na casa do Steve. Aliás, eu achei que o fato de as fotos terem sido rasgadas e de ele ter pedido desculpas era o suficiente para mostrar que ele na verdade era um cara bonzinho, que fez uma coisa sem noção uma vez, mas que "merecia" desculpas. Agora to decepcionada por ter pensado tudo assim, e por não ter enxergado o quanto isso foi problemático. Espero que na próxima temporada ela tenha alguma evolução na forma como foi representada.
    E sobre Crepúsculo... Acho que nem precisa comentar, né? Na época que os livros e os filmes estavam no auge, o que a gente pensava era "Olha só que fofo, ele fica vendo ela dormir e se lamentando por que não pode dormir também pra poder sonhar com ela...". Eu nunca tinha me tocado que era muito assustador acordar e ver um cara no seu quarto te olhando. Só passei a enxergar perigo nisso quando li os relatos de estupro e abuso sexual que a revista Super Interessante publicou no ano passado, depois daquela matéria sobre Cultura do Estupro. Algumas das histórias eram exatamente assim... A menina/garota/mulher acordava, e flagrava um parente ou amigo da família tocando seu corpo ou se masturbando. Sinceramente, eu não sei como consegui dormir depois de ter lido aquelas histórias, porque fiquei um bom tempo chorando na frente do computador.

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    1. Eu fiquei com esse evento das fotos agarrado na cabeça, e o esboço de romance entre os dois me incomodou demais! Como eu falo sempre que posso, Nacy sozinha >>>> all. E Crepúsculo vende muito abuso como romantismo, e isso é bem preocupante. Ainda bem que hoje em dia temos muito menos gente que idolatra aquilo cegamente...

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