Imergir



Verão. O céu mais azul que alguém poderia ver na vida e um sol desejado por 11 entre 10 turistas no litoral. Ironicamente, é logo aqui, no interior. Daqueles dias em que o calor passa do aconchegante, surtindo mais um efeito de vivacidade e animação nos corpos e levando à redução das roupas ao mínimo necessário. Justamente por isso, é essa a época que eu aprendi a odiar com todas as minhas forças. Sim, também odeio o calor e todo o suor que ele propicia, mas comecei a odiar ainda mais as opções que temos para dribla-lo.

À minha volta todos estão felizes e, por que não dizer, radiantes. Não existe outra palavra para definir os efeitos do sol de dezembro sobre banhistas em um sítio. Os corpos em sungas, biquínis e maiôs são razoavelmente variados, exceto por um detalhe: o único gordo é o daquela que os observa, vulgo, eu. Até agora eu me questiono o que estou fazendo aqui, se não me encaixo. Às vezes ainda me questiono como pude acreditar, por um único segundo, que não teria problema em usar um traje de banho de duas peças. E, sim, esse questionamento não me deixa tirar a canga, muito menos pular na piscina.

Nunca mostro mais do que alguns centímetros da minha pele, o que me faz me sentir extremamente exposta agora. Um dos motivos de evitar qualquer tipo de “água empoçada” é a sensação de que ela apenas denuncia ainda mais o meu tamanho. Não, não quero ser um experimento prático de Arquimedes em proporções gigantescas. Também não gosto de como os reflexos e a própria refração deixam minhas formas ainda mais escancaradas e distorcidas. E, claro, um mergulho envolve o famigerado traje de banho. Sendo que as alternativas podem ser ainda piores, já que roupas molhadas são roupas coladas.

Mas eu não fui sempre assim. Não faço ideia de quando eu mudei, mas me lembro de amar a água. O verão até já foi a minha estação preferida! Eu não podia ver uma piscina que já corria para dentro dela, e me tirar era sempre uma tarefa árdua. Eu me sentia melhor ali. Era como se eu fosse mais “eu” na água. Esquecia de todas as preocupações – se é que uma criança “normal” pode ter alguma além das notas do primário –, vivia para aqueles momentos. Eu podia dar braçadas por toda a piscina ou simplesmente relaxar enquanto boiava numa lagoa. Qualquer coisa era melhor ali dentro.

Em especial, eu gostava de mergulhar. Hoje provavelmente eu optaria por essa “modalidade”, porque até que é um meio de me esconder. Mas na época eu simplesmente gostava da sensação. Da sensação e também do desafio de segurar a respiração pelo máximo de tempo possível. Se eu nadava submersa, queria ir sempre o mais longe que conseguisse sem ter de erguer a cabeça. Se ficava parada no lugar, tentava me manter no fundo, sem deixar que a força da água me içasse. Tudo era motivo de tentar ir além, mas, principalmente, de me divertir.

Também gostava de usar biquínis e os escolhia animada e cuidadosamente. Sempre fui mais cheinha, mas nunca me preocupava em escolher o modelo que mais fosse esconder minhas gordurinhas. Se eu achava bonito, era ele que eu pedia para minha mãe. Podia até sair da loja com um maiô preto e bem comportado. Mas, em geral, eu sempre optava pelas cortininhas com babados e frequentemente eram estampas de bolinhas ou listras horizontais. Aquelas que hoje em dia eu vejo e já ouço uma voz na minha cabeça dizendo “isso não valoriza quem tem muito corpo”, vinda da primeira vendedora que me “apresentou” essa frase.

Depois dela vieram vários(as) outros(as). Não apenas de biquínis, mas... Bem, é lógico que essa foi a primeira peça que eu acabei repensando e “adequando às minhas necessidades”. Observando bem a minha expressão e a dos vendedores no momento em que eu fazia minhas escolhas, dava para perceber quem realmente estava sendo agradado. Depois dos 14 anos minha relutância foi reduzida a nada. Comprava cada vez menos roupas de banho, mas, quando isso acontecia, ia direto atrás dos tais “modelos e estampas adequados”. Que, obviamente, eram maiôs pretos e sem graça, que cobrissem o máximo do meu corpo.

Faz uns três ou quatro anos que não compro nenhum. O que estou usando hoje foi emprestado, pela mesma pessoa que me convenceu a vir a essa festa. “É em um sítio, com piscina! É lógico que eu não vou!”. Meu argumento foi o mesmo que nada. Sabe aquelas amigas que a gente conhece há anos e que sempre te vencem pelo cansaço para te convencer? Pois ela é dessas. A diferença é que a gente só se conhecia há cinco dias. Ainda assim, nem minhas amigas de infância foram capazes de surtir o efeito que ela surtiu em mim. Não que elas sejam ruins, elas são maravilhosas. Mas essa nova pessoa me revolucionou como eu nunca pensei que pudesse ser.

Talvez ela leve jeito para mexer com as pessoas. Ou talvez ela só tenha dito tudo que eu precisava ouvir, quando eu precisava ouvir. Ou foi o abraço que ela me deu quando aceitei o convite e o biquíni (pertencente à mãe dela, inclusive), que me fez sentir que eu era capaz e merecia aproveitar o que ela me ofereceu. Só sei que, depois de um tempo pensando, mesmo não estando completamente segura, eu finalmente me mostro. Levanto-me da minha espreguiçadeira, meio trêmula, mas de alguma forma firme. Tiro a canga e exibo meu corpo, sim, mas me mostro de muitas outras formas apenas com esse ato.

Sinto o ar preso nos meus pulmões, mas eu ainda nem sequer cheguei até a piscina. Reunindo a coragem necessária, corro e pulo de uma só vez, sem dar tempo para hesitação. E, no meio daquilo tudo – do impacto, do mergulho, dá água me tocando e me abraçando como a uma velha amiga –, eu me sinto bem. É irônico que eu não soubesse o que eu acabo de constatar. Acho que meu “eu” criança sabia, e eu havia suprimido por todos esses anos. Eu precisava da água. E foi justamente uma submersão nela que me deu coragem de trazer à tona aquilo que eu realmente sou.



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Matéria de Sonhos


Peguei matéria de sonhos, esfarelei-a e, depois de uma fina camada de cola, joguei o pó sobre uma folha de papel. Era lindo. Furta-cor, brilhava e brilhava. Difícil de explicar. Imagine sonhos sobre uma folha de papel. Não dá para descrever, não é? Pois então. Apenas imagine, já basta. Isso porque a matéria de sonhos não é sempre igual. Se você imaginar, assim ela é. A minha, eu imaginava -e via- das cores mais lindas. Você pode imaginá-la verde esmeralda, ou negra com um fugaz brilho púrpura. Ou cinzenta e sem graça. Isso vem de dentro da gente, que não consegue imaginar de outro jeito, porque a matéria de sonhos reflete o que somos. E a matéria de sonhos sobre uma folha de papel é da cor que a gente imagina.

Então... Era lindo, assim que eu a via. Peguei a folha de papel de sonhos, e pendurei no varal para secar. O sol a fazia brilhar ainda mais. Vi os passarinhos se revirando no ninho no alto da mangueira do quintal, quando os reflexos iam bater em seus olhos. Mas logo eles olhavam direto em sua direção, e se encantavam pelas suas luzes. Eu brincava com eles, soprando com força a folha para lá e para cá, aproveitando para acelerar o trabalho que o sol fazia. E quando me cansei fiquei lá, só observando aquele brilho.

Quando a folha secou por completo, saí correndo com ela em mãos, com a segurança de meu pó de sonhos estar bem fixado ao papel pela cola. E a folha voava e voava, espalhando sua luz por todo o quintal, e então por toda a minha casa. Corri para mostrar à minha mãe, que sorriu, com os olhos molhados não sei por que. Depois fui mostrar para meu irmão mais velho, que sorriu também. E achei meu pai por último, que estava com os mesmos olhos tristes de minha mãe, segurando uns papéis que eu não sei de que são. E ele também sorriu. Largou os papeis e foi até minha mãe, que ainda sorria, iluminada pelos meus - ou seria pelos seus?- sonhos.

Não tinha mais a quem mostrar minha folha... Não me deixavam sair de casa sozinha, e meus pais e meu irmão estavam muito ocupados sorrindo. Então fui à cozinha e colei a folha na porta da geladeira. Não ficou bonito. Tirei. Eu queria alguma coisa mais... Então, a ideia. Os sorrisos da minha família estavam mais fracos e menos brilhantes. Corri até o meu quarto e peguei meu estojo escolar de novo. Peguei minha tesoura nova e cortei a folha em alguns pedacinhos.

Guardei um pedaço maior, para quando precisasse, dentro de um bauzinho que minha mãe tinha me dado e que eu nunca tinha usado, esperando ter uma coisa valiosa para guardar ali, a chave. Preguei um pedaço na cabeceira da minha cama, para garantir sonhos bons à noite, e de modo que para sonhar acordado era só olhar para ele de manhã. Os outros pedaços entreguei um para meu pai, um para minha mãe, e outro para meu irmão. Cada um pregou no seu próprio quarto, sempre sorrindo. O último pedacinho peguei e esfarelei de novo. Fui até a janela aberta e soprei o farelo ao vento. Deixei eles voarem livres, para chegarem a quem quiser recebê-los. Um pode ir até você. Basta querer. E saber ver as cores e a beleza da matéria de sonhos.

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Carta a mim mesma, quatro anos atrás



Você ainda não me conhece. Essa versão de você, a quem esta carta se dirige, ainda não tem a menor ideia do que é ser quem eu sou. As únicas verdades que você conhece são as que você já vivenciou, por isso eu compreendo se você não conseguir aceitar minha carta ainda. Mas eu preciso te avisar: um dia, em outra fase da sua vida, haverá uma outra “você” que compreenderá cada palavra que eu escrevo aqui. No momento, o que quero não é que concorde comigo, nem que sinta empatia por mim. Só o que eu quero é que você saiba que eu te entendo.

Entendo quando você se olha no espelho e se acha desinteressante. Não, você não é. Mas eu sei que você aprendeu a acreditar que essa é a verdade. Te ensinaram isso. E certas coisas, por termos aprendido de uma forma tão aguda, para nós parecem naturais e corretas. Mesmo que elas não sejam, de forma alguma.

Também entendo a forma como você vê o mundo e as pessoas. Sua dificuldade de identificação com algumas coisas e os ideais que você formou ao redor disso. Sei que ainda é difícil para você abraçar as irmãs que agem e pensam de um jeito diferente do seu. Você ainda não vivenciou a sororidade*, por isso eu sei que você pode não ser ainda capaz de empregá-la.

E, acima de tudo, entendo que você não me entenda. Porque eu sei que não foi por mágica que você chegou ao ponto em que está agora, então também não será assim que sairá dele. Tudo ao seu redor construiu sua mente agora, assim como construiu a mente de muitas das nossas irmãs. Eu as entendo.

E justamente por entender tudo isso eu estou aqui, te dando hoje o abraço que ninguém te deu ainda. Não, não é um abraço de autocompaixão, mas de pura e sincera compreensão. Pode parecer inútil fazê-lo agora que você não existe mais (a não ser na memória do que eu fui um dia). Mas, simbolicamente, eu quero que esse abraço se estenda além de você.

Quero que ele chegue a cada uma das meninas que ainda são como eu era quatro anos atrás. Meninas que ainda não receberam esse apoio de uma irmã. E que elas saibam que eu as entendo. E quero que, um dia, elas também possam escrever esta mesma carta a uma versão passada de si mesmas. Porque seguir em frente é aceitar o que já fomos.
Assinado: Você, sabe.


*Sororidade: sentimento de amor e união entre mulheres, formando uma grande irmandade feminina.

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