Sobre duas de nós, nós


Sabe quando você olha o céu e sente aquele vento gelado que se adianta à tempestade? Pois é, eu estava me sentindo assim até você voltar. Até você voltar e distribuir palavras vazias e promessas inúteis que um dia me conquistaram como o pesar dos navegantes que anseiam por novos mares em dias de tormenta. Ah, seu eu pudesse alcançá-la e tocar-lhe o corpo que outrora teria sido meu. Não nos amamos dentro desse infortúnio de pequenos hábitos e cóleras, mas nos apaixonamos como quem nasce predestinado à escuridão dos amantes. Eu e você. Quem dera se eu tivesse, um dia, abandonado a rigidez que se revela inoportuna nesse momento de reencontro e me laçado aos seus braços estremecidos por não saber onde se apoiar, e com você caminhasse mundo afora sem saber pra onde ir ou como chegar. Talvez tivéssemos conseguido, assim, aliviar os pesares intimamente trocados em noites de vinho e pequenos afagos. Talvez assim, tivéssemos seguidos sozinhas o caminho que cada qual decidiu trilhar e, enfim, nos aventuraríamos à cegueira inconstante de um universo que tateia com as plantas dos pés as maravilhas do submundo, mas dele desconhece o prazer e as dores que só nossas almas mutiladas pelo exercício da realidade conseguiram encontrar. Impotentemente me vem à memória a doçura letárgica dos seus lábios, nos quais por algum tempo eu me fiz permanente. Ah, quem me dera se Flaubert pudesse explicá-la. Quem me dera se o tempo nos eximisse de um reencontro e nos afagasse com as belezas de outros corpos. Mas parece que quanto mais nos arriscamos à solidão, mais e mais nos aproximamos, como que se os deuses nos tivessem sangrado em conjunto e com isso conseguido, com gestos infantis, lograr uma aliança eterna, cuja ausência se faz mais presente e sensível que o selo de nossos braços e uma existência fragmentada pelos desencontros. Foram muitos os pousos em lugares áridos e temerárias as convivências que não me agraciaram com o seu encanto. Foram inúmeras as palavras rabiscas em livros e que se perderam na linha tênue entre o deixar falar e o se manter distante. Foram muitas as músicas ouvidas e dançadas enquanto permaneciam vivas na memória as madrugadas nas ruas de uma cidade inerte às experiências que nos fizeram rir. Foram cartas trocadas sem remorso ou pesar, desculpas pedidas aos quatro ventos sem razão e muitas, muitas (des)ilusões. E agora? Gostaria que vivêssemos naquele quarto de hotel abandonado que um dia nos permitimos criar. Beber aquele vinho amargo e barato que por alguns anos compartilhou das mesmas mãos que hoje, após longo tempo, tentam, novamente, se tocar.

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