De manhã, após se abrirem, os olhos iam se fixar no teto. Lá ficavam por dez, quinze, vinte minutos. Às vezes mais, às vezes menos, mas sempre lá. De vez em quando nem era manhã: comumente acordava após o meio dia. O pensamento não ia muito além daquele espaço com tinta descascada onde a vista se fixava. Era a letargia do despertar fazendo seu trabalho rotineiro.
Em seguida, o desjejum era emendado no almoço, e não raro comia arroz e feijão acompanhados de uma xícara de café. Se havia alguém na cozinha conversava banalidades: fofocas da vizinhança, programas da TV aberta, convites para aniversários da família. Às vezes ouvia alguma notícia sobre chances de emprego. “Vai lá, conversa com fulano, quem sabe você não consegue alguma coisa?”.
Já fazia dois anos, e nunca conseguia. Quando não era informação furada, era um emprego com exigências demais para sua pouca (quase nenhuma) experiência. Desde a formatura só fazia bicos e no máximo conseguira ficar por dois meses numa loja. Foram os piores. A falsa sensação de independência que o salário medíocre conferia não compensavam o cansaço e as amolações.
Com as tardes seus olhos passavam a se ocupar com as telas. O smartphone e o computador faziam certo trabalho de distração, mas era defronte à TV que passava a maior parte do tempo. Assistia principalmente a filmes, fosse no sistema por assinatura ou baixados pelo computador. Gostava de todos os gêneros, em especial os de aventura. O que era uma ironia, já que sua vida nunca tinha nenhuma.
Vinha a noite, chegava a madrugada, e prosseguia na mesma atividade. Geralmente só a concluía depois das três da manhã, quando começava a sentir um pouco de culpa. Sempre desligava os equipamentos pensando em dormir mais cedo, cuidar da saúde. Com isso pensava que também precisava comer melhor, se exercitar...
Ia se deitar, repousava as pálpebra sobre os olhos cansados e deixava o sono vir. Se não vinha, tentava contar carneirinhos ou qualquer outra técnica em que, no fundo, não acreditava. Tanto podia apagar de vez, quanto revirar na cama a noite toda sem sucesso. Nessas ocasiões, a frustração era o bastante para não permitir que seus pensamentos fossem muito além do incômodo de não dormir.
Esses hábitos, com suas pequenas variações, se repetiam cotidianamente. Os sábados e domingos não diferiam muito do resto da semana. As quebras de rotina vinham com um ou outro compromisso trivial. As tais festas de aniversário, uma ida às compras, ou as raras ocasiões em que aceitava os convites dos amigos para sair. No mais, cada dia era semelhante ao outro e nada de novo acontecia.
E era somente nos poucos momentos em que a mente se permitia divagar que o marasmo com o qual se acostumara vinha incomodar. Quando o teto do quarto não vidrava seus olhos, quando as telas não capturavam sua distração, quando a falta de sono não virava a atração principal: era então que questionava sua vida.
Parecia que nada havia dado certo até agora. E, também, o que havia feito para que desse? Esperar por um emprego não estava funcionando. Será que era hora de mudar de estratégia? Seguir outro rumo, buscar outro sentido para as coisas. E se não fosse estabilidade financeira o que realmente queria e precisava? Via as vidas de seus colegas de faculdade e eles se dividiam entre os que estavam trabalhando em grandes empresas e os que se encontravam naquela mesma situação. Talvez estivessem fazendo as escolhas erradas.
Pensava nos filmes que via, ou mesmo nas notícias que lia de pessoas com vidas intensas e interessantes. Nunca vivera nada intenso ou interessante. Durante o curso, optara por se concentrar em sua grade curricular, dispensando uma oportunidade de intercâmbio. Agora, mesmo sem ter nada de seguro em que se agarrar, continuava optando por uma suposta ideia de estabilidade em vez de qualquer chance de aventura.
Uma aventura. Sentia que era disso que precisava. Podia ser esse o momento de largar tudo, juntar as coisas numa mochila e sair em viagem pelo mundo afora. Mal conhecia outros estados. Outro país, então, só virtualmente. Já sonhara em visitar a Europa, a Ásia e a própria América Latina. Atualmente pensava muito menos nessas coisas, como em todos os seus outros sonhos.
Não sabia se havia mais aventuras em que podia se jogar. As dos filmes geralmente eram aquelas coisas impossíveis. Talvez porque, nos filmes, quase sempre não são os personagens que procuram por ela, mas ela vai até eles. Tinha certeza de que ninguém viria lhe dizer que passara numa seleção para um reality show de sobrevivência, ou que tinha de ir em busca de um tesouro escondido que não sabia que tinha herdado.
Talvez uma aventura pequena fosse suficiente. Ou uma grande, mas que pudesse manter enquanto continuava esperando pela estabilidade. E, aos poucos, ia diminuindo suas expectativas. Diminuindo e voltando para sua própria realidade, para sua rotina, sem saber se, no dia seguinte, o desejo por algo mais voltaria também.
Não aguentei acabar a pesquisa e tive que vir ler o texto. Além de agradável e bem escrito, é um texto bem reflexivo. Acredita que me encontrei em vários parágrafos? Poderia certamente fazer parte dessa história.
ResponderExcluirEu estou vivendo um momento assim, estou numa corda bamba, tentando me manter estável diante do mundo e de mim mesma. Acho que a aventura é bem similar a paixão, ela é necessária em alguns momentos, é o que nos faz sacudir. Sabe é bom como eu sinto "Levanta , sacode a poeira e dá a volta por cima."
Não sei se foi isso o que quis passar, mas como eu sempre fui péssima em interpretação na escola, sempre imagino milhões de coisas atrás das letras mas enfim eu achei isso.
Obrigada por compartilhar!Parabéns!
bjs
Ciana, acho que a gente interpreta as coisas como precisa, sabe? No fundo, eu pus nesse texto uma situação que eu vivencio também, mas eu tb tenho esse desejo por mais (mesmo tendo medo de nunca conseguir). Espero que possamos superar tudo isso!
Excluir