Esta é a segunda parte de uma série de posts. Leia a primeira parte aqui.
Era uma vez, uma mocinha. Essa mocinha era uma pessoa legal, que não desejava mal a quase ninguém, e na maior parte do tempo estava até fazendo o bem. Mas existia também um cara mau que não a deixava em paz. Ele a tratava das piores maneiras possíveis, sem se importar. Os sentimentos dela? Não valiam nada. O que valia era a vontade dele.
Só que, secretamente, esse cara mau escondia um enorme amor pela mocinha. Mas como ele era mau, simplesmente seguiu fazendo essas coisas horríveis com ela. Até que, um dia, alguma coisa fez com que ele deixasse de fazer uma coisa ruim com ela, e o amor falou mais alto. Isso fez então com que a mocinha não apenas o perdoasse, como caísse de amores por ele. E, assim, os dois ficam juntos, se amam, ele se redime de todos os pecados e eles vivem felizes para sempre.
Será? |
Essa história te comoveu? Se sim, não deveria. Se não, você consegue ver por que? Há algo de cruel aí. Pra início de conversa, temos a limitação de uma personagem feminina, que poderia ter mil potenciais a serem explorados, a mero interesse romântico do personagem masculino. Mas isso, apesar de ser um problema, ainda é menor do que o que dá nome a esse post: a redução da personagem feminina ao elemento de redenção do cara que a fez tanto mal.
Esse é um elemento comum na ficção: Crepúsculo, 50 Tons de Cinza, Gossip Girl, inúmeras novelas... São várias as tramas em que a personagem feminina é maltratada por um cara (vilão anunciado ou não), mas que no final é o amor dele por ela (e, claro, o fato deles acabarem ficando juntos) que faz com que ele se arrependa dos seus erros e passe a ser um cara legal.
Esse é um padrão que GRITA machismo. Sabemos que a sociedade prioriza os sentimentos dos homens aos das mulheres. Isso a gente vê o tempo todo: com o monte de "not all men" que surgem quando estamos falando de casos de estupro, com o benefício da dúvida que eles sempre recebem ao cometerem violência contra nós (para não correr risco de manchar suas reputações com nosso sangue), com a exaltação dos "heróis da friendzone" que foram rejeitados pelas moças malvadas... E inclusive na ideia de que se um homem te ama, tudo que ele faz se justifica. E consequentemente a arte espelha em si esse padrão.
E como o fandom (universo de fãs) espelha tanto a sociedade quanto a cultura de massas, não chega a ser completamente surpreendente que surjam ships não-canônicos que seguem essa mesma lógica. No primeiro post eu citei um deles, um dos piores aliás: Jessica Jones e Kilgrave. Mas não precisa ir tão longe para encontrar ships que costumam ser defendidos com base na ideia de que o amor da mocinha pode levar o cara mau para o caminho do bem.
Em Star Wars VII, há pessoas que shippam Rey e Kylo Ren por esse motivo, mesmo depois dele tentar matá-la. Mas ideia de que ele poderia sair do lado negro da força se ficar com ela parece ser argumento suficiente para isso acontecer, né? Né? Este texto no Tumblr (em inglês) faz uma excelente análise do caso, que também se aplica a este post em geral.
É justamente no Tumblr que esse ship é tão popular, e onde mais aparecem fanarts como essa |
Não, nem o seu Dramione escapa desse padrão. Draco é sim um personagem complexo, que cresceu numa família que não lhe passou outro tipo de comportamento senão o elitista e preconceituoso. Mas isso não muda o fato de que ele era racista e cruel, inclusive com a Hermione. Só por um instante, traga a situação para a vida real e substitua a expressão "sangue-ruim" por "macaca" ou qualquer outra ofensa racista. Ia continuar sendo legal que os dois ficassem juntos, depois de tudo que ele fez com ela, só porque isso significaria que ele estava se redimindo? Esse tipo de bullying pesado, especialmente o bullying racista, deixa marcas profundas. Até a idéia dos dois ficarem juntos só depois que ele encontrasse essa redenção, sozinho, me desagrada. É um tipo de passado difícil de ser deixado para trás.
Em suma, o problema é que esse tipo de ship nunca leva em conta os sentimentos da personagem feminina. Quando muito, dão uma medalhinha de honra ao mérito pela conquista de ter mudado a vida de alguém. Só que mulher nenhuma tinha que ter uma obrigação moral de mudar um homem, muito menos de um que a fez tanto mal. E esse papel parece inofensivo quando falamos de ficção, mas aplicado à vida real ele é extremamente nocivo. E assim como a ficção reproduz elementos da vida, ela também faz a manutenção de valores e padrões sociais.
Ah, algo que eu já falei na primeira parte dessa série, mas sempre é bom reforçar. Quando falamos de ships não-canônicos temos uma margem muito grande, feita pela imaginação dos fãs. Um ship muito problemático pode virar algo muito mais complexo dependendo da motivação de cada pessoa. O importante aqui é fazer uma reflexão sincera sobre a sua, e se necessário admitir que alguma coisa não tá legal aí.
SPOILER DE BUFFY: THE VAMPIRE SLAYER
Deixo aqui um mea culpa: já shippei Buffy e Spike por esse motivo. Quando caiu minha ficha, me senti mal, mas fiquei feliz por ter refletido sobre o assunto. Lógico que não vou negar que eu ainda vejo certa química entre eles, mas não mais ao ponto de querer que ele fique com ela só porque ficou (ou para ficar) bonzinho, né? E, olha, uma coisa a ser aprendida com a série: o cara pode ficar bonzinho porque gosta da garota legal, mas ele não precisa ficar com ela ou ganhar uma estrela dourada por/para isso.
Tamires, obrigada pelo post. Estava morrendo pra ver uma discussão como essa. Esses dias eu parei para rever o anime Inuyasha, nao sei se vc conhece. Temos um personagem com centenas de anos, Sesshomaru, que é shippado com uma menina chamada Rin que é uma criança. O ship é forte no fandom. Ainda que a gente relativize a questão por estarmos tratando de um momento histórico como Japão feudal e a cultura japonesa, é de se estranhar que um homem ~corteje~ uma criança, ainda mais uma que é totalmente dependente dele. E no fandom só vejo discussões sobre ele amar a menina como pai ou como mulher mas nunca problematizando o quão errado seria amá-la como mulher, ela estando tão distante disso. Espero que com seu post a discussão ganhe maior proporção e as pessoas passem a refletir melhor sobre o que andam shippando, romantizando, naturalizando. Não digo que é pra demonizar pq é ficção, não tem ninguem sofrendo abuso lá de verdade, mas é importante ser capaz de refletir sobre. Em tempo, faço um OBS sobre o seu texto: Discordo sobre Snape/Lily estar na lista de shipps problemáticos, especialmente com a esdrúxula comparação com Dramione (ew), até pq eles eram melhores amigos que brigaram e ele tentou o perdão dela de todas as formas e ela por orgulho nao perdoou, chegando a se casar com o homem que mais fez mal a ele, do grupo de "ouro" que empurrou Snape pro único lado que o aceitou, o negro. Eles se feriram mutuamente e nunca se tornaram um casal e quem sofreu de verdade foi ele, porque ele a amou de verdade e se arrependeu e se redimiu de todas as maneiras que encontrou possíveis, ainda que ela não estivesse lá para ver o ficar com ele. E se no universo fanon as coisas são diferentes, então não dá nem pra julgar abusivo pq teria que criativamente mudar o curso da historia toda (nao sou de ler esse ship mas se fosse me propor a ler seria antes da merda toda acontecer, nao veria graça em mudar os fatos mais importantes do canon). De resto, acho que concordo com tudo. Valeu!
ResponderExcluirOlá, Fabiana! Os animes rendem um post a parte, tanto pelo seu fandom quanto pelas produções em si, né? Infelizmente, existem certos aspectos da cultura do Japão que naturalizam e muito esse tipo de coisa. Espero que, assim como nós estamos problematizando cada vez mais no ocidente (e com isso provocando algumas mudanças), que o mesmo possa ocorrer por lá!
ExcluirSobre Snilly, eu entendo as divergências de opinião sobre as ações dele, mas eu ainda reprovo, sabe? Mas de todo modo, a comparação no post surgiu mais por causa dessa imagem, não acho que realmente seja muuuuito semelhante a Dramione. Mas só lembrando, no caso a relação do Snape e da Lily não seria de fato abusiva, mas foram as escolhas dele que levaram ao distanciamento dos dois. Ah, e eu sempre saio em defesa da escolha da Lily pelo James, já que o que nós recebemos é o ponto de vista do Snape, notável inimigo dele, né? Não dá pra comprar totalmente o lado do Snape sem tentar entender o lado do James.
Esse post me fez lembrar um câncer chamado Delena, não sei porque...
ResponderExcluirInfelizmente, Rique, esse padrão acontece MUITO na ficção... Então é natural identificar vários casos parecidos...
ExcluirNunca tinha parado pra pensar que Dramione era problemático. Quando comecei a ler fanfics, no início eu achava nojenta a ideia de que os dois poderiam ser um casal. Até que encontrei uma fanfic mais ou menos bem escrita (a gente sabe que nesse universo de fanfic a maioria das histórias é péssima), e acabei "aceitando", apesar de ainda achar Romione muito melhor. Mas depois de ler esse post, eu consigo entender por que achava nojento de início. Afinal, o Draco passou a maior parte da história dos sete livros atacando e maltratando a Hermione, e mesmo que ele tenha passado por uma certa desconstrução e redenção no final, isso não ameniza o que ele fez com ela.
ResponderExcluirMas essa ideia de que a mocinha tem o dever de "mudar" o vilão me faz pensar muito numa situação que é bem mais comum na vida real. Aquilo que a gente ouve de desde crianças, de que "Se ele te trata mal, é porque gosta de você", ou então de que a mulher deve insistir em ficar com o cara, porque o amor vai fazer esse "ser uma pessoa boa", e que se o relacionamento não deu certo (óbvio que não deu, por que um relacionamento desses daria certo??) foi porque a mulher "não soube cumprir o seu papel". Tão ridículo ouvir isso!
Exatamente isso, Lethycia! A gente aprende na vida a passar a mão da cabeça dos caras, e isso se reflete na ficção.
Excluir