Dos outros e de nós



A xícara de café esfriava, repousada sobre uma das cadeiras do auditório, enquanto a garrafa d’água em sua mão esquentava. Já era a quinta vez que o texto era repassado, e ninguém ficava satisfeito. Estavam todos cansados, permaneciam ali há horas, mas o resultado não estava bom. Mais que ninguém, Miriam sentia a ansiedade a dominando cada vez mais. Era por causa dela que não podiam ir embora, que tinham de ensaiar tantas e tantas vezes.

Os colegas atores não demonstravam raiva ou a culpavam, mas ela já se sentia mal por conta própria. Os gritos e reprimendas do diretor não passavam de uma ajuda pro serviço. Ela não conseguia entender. Nunca tivera tanta dificuldade para assumir um papel. Já fizera personagens mais velhas que ela, mais jovens, loucas, putas, santas, professoras, até outras artistas. Mas justo aquela ela não conseguia encarnar.

Qual a grande dificuldade? Ela não conseguia decifrá-la. Era uma mulher comum, e já tinha interpretado mulheres comuns antes. Uma personagem intensa, mas isso também não era difícil para ela. Não era misteriosa, não era elaborada demais, mas era diferente. Por que? Por que ela não conseguia entendê-la?

- Afinal de contas, Hélio, qual a motivação dessa bendita personagem? – perguntou, exasperada, depois de um dos acessos do diretor.

Ela já não sabia mais aonde ir para procurar por inspiração. Sua voz já estava mais fraca e se esquecera de tomar água há pelo menos duas horas. A garrafa em sua mão fazia mais o papel de distração para o próprio nervosismo. Se render daquela forma, fazendo uma pergunta que ela sabia que podia desencadear de vez a fúria de Hélio, era uma medida desesperada. Como imaginado, ele respirou fundo, mas não conteve a ferocidade de seus berros:

- Você não é uma atriz? O papel é seu! Descubra!

Descubra. A palavra ressoou em sua mente. Se o resto daquela fala era uma chicotada em sua moral, aquela palavra final era o álcool jogado sobre as feridas. Descobrir como? Já era a última semana antes da estreia da peça, e ela ainda não conseguira descobrir absolutamente nada sobre a motivação da personagem. O que mais ela podia fazer? Estava tão cansada...

Não podia seguir daquele jeito. Com esforço para se manter firme, apesar dos contínuos gritos do diretor, pediu licença e foi para o camarim, sem esperar resposta. Tremendo de cansaço e apreensão, enfiou a cara na pia. Deixou a torneira escorrer por uns segundos e aproveitou para beber um pouco, dali mesmo. Estava no seu limite. Os gritos do diretor, os olhares escrupulosos dos colegas, suas próprias dúvidas, tudo girava dentro de seu cérebro como a água daquele ralo. Mas, ao contrário do conteúdo da pia, o da sua cabeça não se esvaía.

Levantou-se, deu alguns passos para trás e sentou-se no chão. Pensou rapidamente no texto, tentando não se focar em nenhuma cena ou fala específica. Tinha de haver uma resposta ali, ela só não procurara direito. Todos tem uma motivação, era impossível que aquela mulher fictícia não tivesse. Parou, no entanto, ao pensar em si mesma. E ela? Qual era sua motivação?

Lembrou-se da primeira vez que fez uma aula de teatro. Criança, tímida, desde aquela época já não era mera diversão, mas também um meio de ser mais extrovertida. Cresceu, adolesceu, e continuava atuando. Era bom fazer uma manutenção, e se o medo de falar em público voltasse? Mas ficava um tempo sem fazer teatro e ele não voltava. Não era pela timidez.

Época de vestibular, escolheu artes cênicas. Era só o que sabia fazer, afinal. Não. Pensava assim, mas no fundo sabia que era mentira. Sabia escrever, era boa em línguas, em história, até em biologia. Mas era só o teatro que ela amava. Escolheu a profissão, o teatro, por amor. Gostava de ser e vivenciar o outro, podendo voltar a ser ela mesma quando saía do palco. Sentia prazer em mexer com as emoções do público, e via na arte a obrigação de fazer os outros pensarem. E, principalmente, gostava de fazê-lo descobrindo mais sobre seus personagens. Era isso que a motivava.

Por fim, percebeu que o mesmo motivo que a levara até aqueles palcos era o que a fazia bater tanto com a cabeça na parede para entender uma pessoa que nem existia. Era o que sempre fazia, tentava conhecer o outro. “Afinal de contas, se sou eu essa personagem, por que ela não pode ser motivada pela minha vontade de vivê-la?”, pensou.

Não estava completamente segura, mas voltou para junto dos colegas mais tranquila – e hidratada. Repassaram a cena mais umas duas vezes, e finalmente começaram a ficar satisfeitos. Não estava perfeito, é verdade, mas já era algo. Ao menos, podiam ir para casa e descansar. E, mesmo não estando perfeita, Miriam não pode deixar de sentir um certo orgulho da própria atuação. Acreditava que, pela primeira vez, ela realmente sabia o que motivava sua personagem. Ela mesma.

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