Odette/Odile - por Lana Scott




quinta-feira, 16 de julho de 2015 

Odile


"Esse é o meu lugar." pensou ela, no exato momento em que pôs um pé para a frente e levou um encontrão de alguém que passava com uma bandeja cheia de módicas porções de algum crustáceo adornado com molho. "Aqui nesse engasgo de encruzilhada".

Desculpas foram murmuradas e a bandeja seguiu flutuando acima das cabeças, cheias de laquê ou gel de cabelo. 

O pensamento lhe ocorreu, não porque gostasse de crustáceos, ou mesmo do garçom: as palavras lhe vieram meio que como sugestão do universo, metalinguagem do próprio recado que lhe estava dando. 

"Por mais que eu ande, dance, circule e eventualmente coma módicas porções de petiscos com molho, sempre acabo passando de novo neste ponto... Estagnada, o fluxo impedido." concluiu. 

A mente trabalhava a todo vapor, percebendo o ambiente, enquanto apenas uma parte tinha ciência do pensamento perturbador e tomava nota, como um lembrete deixado na porta da geladeira. 

Ela gostava do fluxo natural das cadências. A fechada de caminho quebrara seu ritmo, que ia embalado pelo ruído das centenas de vozes (eufóricas, talvez até histéricas) que eram emitidas e se batiam e rebatiam diversas vezes nas paredes do imenso recinto. Recuperou-se e retomou a linha principal de seus pensamentos, que envolviam praguejar contra o volume alto demais daquela reprodução estourada do que um dia alguém chamara de música. 

Envolviam também uma urgência não verbal de sentar-se para calar os pés, massacrados por sapatos de salto que ela nem ao menos queria estar usando. Apesar de todos os incômodos, seu saldo de sensações era inexplicavelmente positivo. Talvez fosse um certo contágio com a ideia de grandeza e importância que todos pareciam ter de si mesmos, como se acreditassem estar num baile da nobreza do século XVII. Essa fantasia também a penetrava, numa osmose catalizada por docinhos graciosos, módicas porções de crustáceos com molho e bebidas servidas em copos de cristal. 

Sim, bebidas! Elas ajudariam a neutralizar a dor e seu senso, por demais críticos. 

"Bem que eu sentia falta de alguma coisa...". 

Houve certo rebuliço e exclamações de prazer na parte do seu cérebro que se sentia um tanto quanto seca, como se vários publicitários trabalhassem num escritório lá dentro e houvesse um boato de aumento. Um pouco de embriaguez talvez tornasse seu peso mais leve sobre os saltos e embaçasse os ouvidos, passando também sobre os olhos um filtro dourado como as sandálias de quem usa estampa de oncinha.

Saiu andando, agora de maneira mais firme e decidida. Era sempre constrangedor andar sem rumo numa festa. Todos pareceiam ter coisas muito importantes ou divertidas para fazer. 

"Bom, agora também tenho." gracejou consigo mesma, satisfeita. Aliás, quase: a real satisfação viria quando tivesse cristal e líquido âmbar entre seus dedos. Poderia até ficar parada, blindada, bebendo em silêncio... Verdadeiro luxo! Nada autorizava mais alguém a ficar parado numa festa do que ter um copo nas mãos.

Com o repuxo irônico dessa sabedoria entortando os lábios ela foi desviando dos vários paletós e vestidos que ocupavam os espaços, existências febris pulsando dentro deles. Ela quase não reparou em seus rostos. Os olhos corriam, metódicos, em busca de gravatas borboleta - símbolo extra oficial de servidão, que abraçava tal qual coleira o pescoço dos garçons. De forma automática, descia das gargantas para as bandejas, eliminando sistematicamente as que continham alimentos. 

Buscava algo mais interessante para sua própria garganta do que crustáceos, gravatas ou molho, e de preferência em não tão módicas quantias. Avistou afinal taças compridas, cheias de um líquido mais claro e borbulhante que o desejado e projetado por seus pensamentos. 

"Mas serve." pensou, uma sensação já agradável lhe tomando. 

- O senhor me vê uma taça, fazendo o favor? - pediu ela, tentando não deixar transparecer a sua avidez. O garçom olhou-a de cima a baixo e com a mão livre ajeitou a gravata borboleta, como quem coça uma chaga. 

- Sinto muito, mas a senhorita é obviamente menor de idade e não posso te dar bebida. 

A isto, a princípio, ela não soube como reagir. Aquilo nunca lhe acontecera na vida, nem mesmo quando era menor de idade. Forçando um sorriso simpático, ela perguntou: 

- E quantos anos o senhor acha que eu tenho, pelo amor de deus? 

Talvez captando uma parte da ironia mal contida da pergunta, o homem hesitou por um segundo antes de responder, ensaiando um sorriso triunfante: 

- Quinze. Uns quinze no máximo.

Dessa vez ela não pôde se conter. Um riso lhe sacudiu de tal forma que ela mal reconheceu a própria voz. Enxugando os olhos, apanhou a taça que lhe foi estendida e limpou o riso com um suspiro e um gole. Algo no sarcasmo dos olhos, no cansaço da sua risada, convencera o garçom melhor do que um documento de identidade faria. Não se pode falsificar esse tipo de coisa na impressora de casa, afinal de contas. 
Afastou-se do garçom (e da sua bandeja) meio a contragosto. Gostava do peso da taça nas mãos, mas gostava mais do peso do líquido descendo pela garganta e se alojando no estômago. Seu cérebro contorceu-se de alegria, vibrando como se no escritório todos estivessem assistindo a um jogo de futebol no meio do expediente. Gol. Logo precisaria de refil. Controlou-se para não beber muito rápido e fazer render o momento em que podia parar de fingir estar interessada em qualquer coisa que as pessoas estivessem usando para se entreter. Ah, abençoados minutos! 

Não que ela não gostasse de festas... Estas eram, afinal de contas, um habitat natural de bêbados e ela gostava muitíssimo de pessoas embriagadas. O que mais a incomodava nesse tipo de evento era o quê de histeria na pulsação das pessoas, desesperadas para se divertir. O que festejavam, afinal, se precisavam catar migalhas de alegrias artificiais? 

"Por favor, não tente puxar conversa. Por favor, por favor, por favor..." pensou ela, ao notar a aproximação de um homem à sua esquerda. As palavras se repetindo na cabeça como uma prece, enquanto tentava evitar contato visual. O esforço mostrou-se inútil, como de costume. O homem, não percebendo seu desconforto (ou simplesmente ignorando-o por comodidade) tratou de colocar-se aso seu lado e olhou ao redor em busca de um assunto qualquer para lhe falar. 

"Se ao menos esses copos viessem com um sinal de 'ocupado', como quartos de hotel ou plaquinhas de rodízios..." resmungou consigo, enquanto fazia um contorcionismo para parecer desconhecer a tentativa dele de comunicar-se com ela. "Ao menos, pelo cheiro ele parece bêbado. Talvez seja até uma conversa entretível." pensou, tentando consolar-se. 

- Festão... - começou ele, aparentemente cansado de procurar um motivo mais digno para quebrar o silêncio. 

- É. - disse ela, virando-se para ele, enfim. 

Com o terno já aberto e a gravata frouxa, o homem devia ter seus 40 e poucos anos. O rosto levemente avermelhado e os olhos brilhantes confirmavam o que o cheiro sugerira: ele estava bêbado como um peru de natal. Sentindo sua simpatia crescer quase que automaticamente, ela acrescentou: 

- O buffet é de primeira. 

Quase arrependeu-se do complemento quando ele, sentindo uma abertura, assumiu-se autorizado a intimidades: 

- Você bebe muito pra sua idade. - disse, algo entre risonho e repreensivo.

"Haja!" gritou ela por dentro, sem poder impedir os olhos de se revirarem nas órbitas. Segurou a língua ferina, sem paciência para confusão, e lançou uma resposta ambígua: 

- Fazer o quê? Champagne bom da porra. 

- Você também xinga bastante pra sua idade... 

- E você parece ter bastante ciência dos dados do meu nascimento. - ralhou ela, agora visivelmente irritada - Vamo lá, conte-me mais sobre as minhas primaveras! 

O homem engoliu em seco (talvez não tão seco assim) e balançou de leve para trás como se a raiva tivesse lhe atingido e desequilibrado tal qual corrente de ar. Depois de piscar algumas vezes em silêncio, soltou um arroto de boca fechada e tentou outro caminho: 

- Não provei... Prefiro Whisky. - retomou, o tom de voz já mudado. 

Ela respirou fundo e, olhando para a própria taça, já quase vazia, matutou se saía e o deixava falando sozinho ou se dava chance para a conversa. Acabou optando pela segunda opção, afinal Whisky era bom demais. 

- Eu também, mas não achei e minha garganta estava bem seca... 

- Posso te mostrar onde tem. - ofereceu ele, abrindo um sorriso vesgo. - Peguei tantos que o garçom já sabe até meu endereço. 

- Parece ótimo. - riu ela, virando a taça de champagne e colocando numa mesinha com outros copos e pratos vazios. 

- O nome dele é William e você não acredita em como eles pagam mal... - continuou ele, enquanto abriam caminho pela festa, conversando. 

Arranjei quem me aguente por hoje" pensou ela, satisfeita consigo mesma e com a noite. Módicas porções de interação social não lhe fariam mal, no fim das contas. Principalmente se acompanhadas de não tão módicas quantias do líquido âmbar que era tão aguardado pelos escritórios secos da sua mente.

Quem escreve

                      


Me chamo Lana, tenho 20 anos e uma incrível fome de mundo(s). Sou uma amante das histórias. Apaixonada por ouvi-las e contá-las de todas as maneiras, através das mais diversas artes e suportes. Desde pequena fui encantada pela música, pelo movimento do corpo, pela magia... E pela literatura, que me apresentava mundos fantásticos além deste, me dava o direito de viver mil vidas além desta. Talvez seja por isso que escrever seja a arte que eu faça com mais intimidade e coragem.

Seja como for, o importante são as histórias


12 comentários:

  1. Texto fluido como líquido na garganta.

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  2. Texto fluido como líquido na garganta.

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  3. Garçom, por favor, uma cerveja pra molhar o escritório!!

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  4. Maravilhoso texto! Fluido e cadenciado deixa um gostinho de quero mais!

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  5. Parabéns lana! Fluido e coerente, sua forma me conduziu...queria saber mais sobre esses dois...rsrs mil bjs

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    1. Brigada, Mabelinda!
      Espere cenas dos próximos capítulos. hahaha

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  6. Conte-nos mais... Quero um livro inteiro :D

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    1. Um livro eu não sei, mas vai rolar mais história sim! :D

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  7. Lana
    Manda Maaaaaais.

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